Era um dia qualquer na semana. Minto,
era um dia útil da semana. Tipo, nem sábado, e nem domingo. O que é uma coisa
engraçada dizer que os dias mais chatos da semana são os uteis. Enfim, era um
dia qualquer na semana sem contar os dois que são considerados o “final de
semana”.
Neste dia eu
peguei um ônibus para ir para a faculdade. Coisa que sempre é uma experiência
engraçada, uma vez que moro longe pra caralho
da faculdade. Imagine só, uma hora e meia todos os dias dentro de um busão. Pois bem, você, meu amigo, que
passa por situação semelhante sabe do que eu estou dizendo. São centenas de
situações inusitadas pelas quais passamos dentro do tão popular transporte
coletivo. E comigo nesse dia não foi diferente.
Me sentei na
janela do lado esquerdo do ônibus, logo após a primeira porta de saída. Do lado
esquerdo de quem está entrando no ônibus. Tipo, quando você pega seu troco com
o trocador e vira o corpo pra ir se sentar. O lado esquerdo desse ponto de
vista, entendeu? Não importa. O negócio é que eu me sentei na janela.
O ônibus
estava vazio. Claro que estava! Eu sou sempre um dos primeiros a entrar. Mas
não completamente vazio, tinha o motorista e o trocador e algumas pessoas que
entraram comigo. E estava quente, como estava quente. Não me lembro a estação
do ano, mas lembro que estava quente.
Passado
algum tempo, alguns outros viajores também entraram na condução. E um deles era
um velho, muito velho. Aqueles velhos que de tão velhos você sabe que estará
fedendo à alguma coisa. Ou talco, ou chulé, ou perfume de velho, ou lhama
molhada, ou qualquer outro fedor. Mas o cheiro é garantido.
Eu
mentalizei “Não senta do meu lado” e fiz disso quase que um mantra: “Não senta
do meu lado, seu velho”, ““O ônibus ainda tem outros lugares ”, “Se eu fizer
cara de mau e olhar para o lado...” ,“Ele já me viu, já me olhou.” “Fudeu”. Eu
sabia que ao fazer isso, digo, ao mentalizar isso eu estaria selando o fato de
que o velho ia sentar ao meu lado e me prenderia com seu fedor milenar contra a
janela, que por algum motivo idiota não abria em baixo, só uma fresta na parte
superior. Eu fiquei puto.
Acho que
esse é um daqueles dias em que Ele te faz passar por algumas aprovações. Eu
devia estar sendo testado mesmo. O engraçado é que eu não errei nada até o
momento. O velho sentou do meu lado e fedia. Era uma inhaca inexplicável. Mas não
podia fazer nada, já estava ali, ele também, a viagem ainda era longa. Eu
apenas torci para que quando o ônibus andasse, e fizesse-se algum vento, aquela
catinga fosse dispersa no ar. Mas não foi.
O sol estava
castigando, acho que era horário de verão, as datas começam a fazer
sentido. E o que antes estava só fedido,
agora tava podre. Eu comecei a me perguntar se ele já não havia morrido, porque
estar em decomposição seria a única explicação para o cheiro nauseabundo.
Para piorar,
sabe quando você sente, sem olhar para a pessoa ao seu lado, que ela está te
olhando? Você tem a impressão, um sexto sentido que se ativa apenas dentro do
ônibus, de que a pessoa do seu lado tá te olhando? Então, eu tava sentindo
isso. Mas que diabos esse ancião poderia estar querendo comigo? Ele podia ser
um gay, um velho gay. O que seria bem preocupante. Ele também podia ser um
ladrão, mas essa hipótese não me convenceu.
Pronto!
Fazia uns quinze minutos que o velho estava me olhando, pensei em duas hipóteses
concretas. A primeira e mais razoável; ele estava esperando eu realizar um
contato visual para iniciar aquelas conversas de velho. E a segunda, não de
toda impossível; ele teria finalmente morrido e por isso não voltava a cabeça
para o lugar. Meu primeiro erro do dia. Não era nenhuma das hipóteses
anteriores.
Quando eu
olhei finalmente para o velho, percebi que aquele senhorzinho, branco e
enrugado, estava era olhando para o meu braço. Mais especificadamente para o
meu relógio. E quando ele finalmente conseguiu minha atenção, perguntou:
-Já são
cinco?
Respondi “não”
e informei que ainda eram quatro e meia da tarde. Ele não me agradeceu, nem
nada. Ficou sério e retornou a cabeça para o lugar, olhando para frente
novamente. E ficou assim, imóvel por vários minutos.
Quando a
gente está num ônibus sem livro para ler, sem música para escutar, e não temos
ninguém para ligar, o que nós fazemos? Viajamos na maionese. Ficamos perdidos
em pensamentos absurdos sobre temas inúteis. Divagamos sobre os problemas
mundiais e sobre diálogos que ainda não existiram. E foi exatamente o que eu
fiz. Não tinha merda nenhuma pra
fazer, eu fiquei encucado com o velho
ao meu lado.
Por que ele
perguntou se já são cinco, ao invés de me perguntar as horas? Por que cinco? Ele obviamente tinha algum compromisso para as
cinco horas. Mas o que um velho como aquele teria para fazer? Pensei que ele
deveria ter que tomar algum remédio a este horário. Me satisfiz com essa
solução e deixei o velho de lado. Até que...
-Já são
cinco horas?
Mas que diabos
esse velho vai fazer que tem que ser cinco horas? Disse “não”, de novo, e
informei que ainda faltavam vinte para as cinco. E novamente fui atormentado
pelo fardo do ócio no ônibus. Tive que repensar o que ele faria as cinco de tão
importante.
Ele poderia
estar indo para alguma consulta médica agendada, e por isso a preocupação com o
horário. Mas eu não sei por que eu fui nascer com uma mente tão produtiva.
Quando percebi já estava criando uma história para este velho. Pensei em algo
mais ou menos assim:
Ele já
estava velho e morrendo, e sabia que não ia viver muito mais. Pensando em seus
filhos e na sua falecida esposa (porque ela tinha que estar morta, me recuso a
acreditar num casal de Mun-rá) ele havia escrito uma carta. Carta na qual ele
contava toda sua história, e deixaria uma recado, uma lição de vida. E que esta
carta seria entregue as cinco horas daquele dia para um completo estranho para
mudar sua vida. E porque ele sabia que este estranho iria fazer de sua história
um fato público.
Bom,
pensando essas bobeiras eu estava animado. Me decidi com convicção que quando
fosse cinco horas eu mesmo avisaria para o sofrido senhor e teria finalmente
minha resposta ao que aconteceria a seguir. Agora era eu quem olhava para o
relógio a todo instante. Fazendo uma enorme contagem regressiva. Constatando a
todo momento que somente se passaram alguns segundos desde a ultima olhada.
O velho
permanecia impassível ao meu lado. Não me perguntava das cinco horas mais. Eu
estava atônito para o desfecho dessa história. Mas e se as cinco horas ele
tirasse uma arma e explodisse a própria cabeça? O tempo não passava! E minhas
conjecturas aumentavam a cada segundo. Milhares de histórias e possibilidades
se formavam na minha mente desenfreadamente. Estava tão absorvido pela história
do velho que não percebi o que fiz. Foi algo mais ou menos assim:
-JÁ SÃO
CINCO HORAS!
Eu, com as
duas mãos pra cima, berrei na orelha do velho que já eram cinco horas. Estava
com os olhos alucinados, vidrados, esperando para captar toda a reação do velho.
Mas o desgraçado só me agradeceu e voltou ao seu estado de decomposição.
Não vou
negar que eu me senti muito frustrado. Nada, não tomou remédio, não desceu do
ônibus, não me deu nenhuma carta, tampouco se matou. O velho maldito estava
ali, inexpressivo. Eu me conformei com o fato de que eu poderia ter exagerado
um pouco na especulação e voltei meus pensamentos para outra bobeira qualquer.
Passado
alguns minutos o velho se manifestou:
-Já são
cinco e vinte?
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E aí o café estava bom?